A VAGINA
Deambula entre a idolatria, o desdém e a repulsa. O seu valor metamorfoseia-se consoante o dia, o lugar e o berço religioso. Define um corpo, um sexo, um género, um humano. Da sua boca, cospe palavras de revolta. Desde a tenra idade, conhece as gélidas correntes que a prendem à submissão. Pesam sobre os seus ombros, reprimem o seu movimento em direcção à vanguarda. Querem-na destituída, susceptível, lacrimosa para curvá-la diante do espelho onde se vislumbra um só vulto: o Falo. Ela resiste, em cativeiro, nas muralhas do tempo. Mas, em subterfúgios da boa moral, os Malfeitores prorrogam a sua libertação e, dissimulados, estraçalham a cartilha dos seus Direitos. Engalanados com sumptuosas vestes, no seu púlpito, aplaudem as barbáries contra ela cometidas. Poucos ousam interromper o espectáculo. Os aplausos continuam, a plateia, inconsciente ou não, mostra assentimento. As cenas reiteram-se: venda, tortura, agressão, mutilação, estupro, extermínio. O palco adquire tons de escarlate, outrora símbolo de voluptuosidade, agora de dor, muita dor. Desenhando no rosto a pungência das cenas que deslizam perante os seus olhos, os espectadores permanecem calados, imprevisíveis. Os Feitores do Mal, tantas vezes enaltecidos, acenados e galardoados por quem desvaloriza a contundência dos seus ditames; regozijam-se a cada fuga, a cada grito. Do seu pedestal, acariciam os seus anéis e, ao mesmo tempo que bebem mais um gole de whisky, ouvem o gemido de uma mais vagina, enxovalhada e impelida para a morte. A cortina fecha-se. O espectáculo terminou. Reinicia-se dentro de escassos minutos, com uma nova protagonista, com igual desfecho. Porque a vagina é poluta, pecaminosa, repugnante. A ela se reserva meramente o direito a subalternizar-se e a obedecer, cegamente. O seu aniquilamento, fim último dos Malfazejos, tem a estriba no “vaginocídio” – axioma do sexismo, misoginia, machismo e falocracia – que fede ora latente, ora manifestamente. Pulula, irradia, prolifera, insufla, granjeia, estonteia, impregna, imiscui-se, penetra, suga, domina, perpetua-se e engole-nos na atrocidade da sua natureza. O “vaginocídio” nutre-se da putrefacção do âmago humano, malogra sonhos, corrompe quem, por mero acaso ou infortúnio, possui um clítoris em vez de dois testículos. Talvez um dia, o sol resplandeça sobre o monte de Vénus e entorpeça terminantemente a força motriz desta chacina milenar.
Anabela Santos
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